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Estranho

Ele chegou num dia de carnaval, sozinho e sem alarido. Procurou alojamento na cidade; de modo sisudo e calado, como era carnaval, não despertou tanta curiosidade, uma vez que a população estava curtindo os festejos locais, no pequeno vilarejo. Andou pelo lugar em busca de uma casa para sua acomodação. Sempre sério e sem se alongar em conversas, demonstrava ser tímido  demais.Quase não falava, era um homem de poucas palavras.

Nem alto, nem baixo; nem gordo, nem magro, tez branca, cabelos lisos e pretos. Uma barba rala que tentava dar uma sobriedade ao rosto fino e aos lábios secos. Olhos castanhos e alienados, parecia que olhava a esmo, ao longe, além de tudo. Um olhar vazio.

Ele perguntou e encontrou um quarto para alugar. Era numa ruazinha sem cascalho e com alguns arbustos ao longo da mesma; onde a casa se erguia sem beleza e com atrevimento. Tinha quarto e cozinha, com paredes pintadas de um tom amarelo velho, com alguns lugares descansando. Alguns móveis faziam o preenchimento daquele local, sem beleza e desinteressante. Uma cama, um guarda roupas no quarto. Na cozinha um fogão usado e uma mesinha com duas cadeiras. Só. No teto uma luminária que estava presa num suporte antigo, que dava um toque elegante ao pequeno aposento. O banheiro era pequeno e com uma pia que servia para a higiene matinal, com um chuveiro de modelo antigo,mas que ainda fornecia água quente nos dias frios, assim dizia a dona do imóvel. O forasteiro não fez questão disso, apenas disse-lhe que servia para seus intentos.No mais, era feio aquele local, mal ventilado e com um portãozinho caindo de velho, pedindo reparos; a dona, uma senhora viúva, não conseguia alugar, e agora estava eufórica com a chance de ganhar um dinheiro a mais, para aumentar a renda, já que vivia da pensão do marido que falecera atropelado por uma moto. O sujeito concordou com o preço e lá se instalou, quase de imediato, visto que, não trazia móveis ou utensílios pesados, apenas algumas malas, num carro que tinha alugado no dia anterior.

No pequeno distrito, onde todos sabiam de todos, sua chegada tinha despertado curiosidade quem era o tal sujeito, que chegara de modo aventureiro, buscando um local para se acomodar? Cidade pequena, pessoas ficam mais cismadas. Havia burburinhos de que ele era um fugitivo, mas logo alguém acessou a internet e se pôs a vasculhar, foto, nome dado e tudo que tinham, e nada de achar algo que denegrisse a imagem do forasteiro. Era apenas um estranho, nada mais.

O tempo tem seu efeito paliativo e de causar esquecimento ou baixar a guarda, e assim o foi. O tempo avançou como o mar entre as falésias, e depois uns dias não se falava mais do sujeito que alugara um quarto e cozinha no final da rua sem cascalhos. Este quase não saía de casa, a não ser para comprar alimentos na mercearia do turco, que morava há décadas no vilarejo. E como era de poucas palavras, quase sempre entrava, comprava e pagava, já com dinheiro trocado, cumprimentando e pagando logo em seguida, evitando assim perder tempo em conversas paralelas que eram comuns em gente da periferia. Assim, não se sabia muito dele, nem se era casado, solteiro ou largado; se estava de férias ou permaneceria com residente fixo no local, coisa que nem mesmo a dona da casa que alugou, ele mencionara. Ao tentar entrar no assunto, ele desconversou. Ele era mesmo estranho. 

Numa  tarde de sábado, o vento mudou indicando chuvas á vista; nuvens carregadas se apressaram a cobrir de negro  o céu, e o vilarejo ficou envolto nessa atmosfera carregada. Choveu e choveu muito, como dizia-se, chovia à cântaros, como se Deus permitisse que o mundo acabasse novamente em água. Era estranho aquele mundaréu de água, em pleno mês de  maio, mas a natureza tem sua beleza e a inconstância faz parte do processo natural.  O lugarejo desapareceu debaixo de um véu de água e vento. Ruas vazias, o já escasso comércio, fechado. Algumas lâmpadas acesas nas ruas e na avenida principal. Um ou outro morador, se arriscava a olhar pela janela ou vidraça, para ver a força da natureza em ação. Uma moradora antiga,  de repente, se pôs em frente á janela, e puxou as cortinas para ver a tempestade; tudo á deriva. A rua da sua casa que dava  acesso à avenida principal, onde a água da chuva formava corredeiras que buscavam um escoadouro, de forma violenta. ao longe na rua sem cascalho o pequeno facho de luz acesa, tremeluzindo na escuridão e sendo distorcido pela água que caia lá fora. Pensou ver um vulto no entorno da rua em frente á casinha final da rua, mas seria improvável, naquela situação. Deveria ser apenas arbustos sacudindo com a ventania, apesar de ter a sensação  de ver movimentos! O que lhe pareceu estranho, mas deixou a cisma de lado e se recolheu. A chuva não dava tréguas mesmo.

No dia seguinte, a tempestade havia deixado seus rastros...alguns galhos caídos, lama que invadira algumas ruas e uma localidade assustada. Conversas, gritos na rua e um silvo agudo de ambulância.Uma violenta revolta e indignação tomou conta das pessoas que viram a cena.

Na maca de um hospital na cidade próxima, uma mulher estava em agonia extrema, com ferimentos pelo rosto, um olho inchado e quase fechado, boca sangrando, corpo, cheio de hematomas, ela mal conseguia balbuciar algumas palavras, apenas, chorava e seu corpo sentia as dores de um espaçamento sofrido. Sua face estava quase que desfigurada, como se houvesse recebido socos ou golpes de objetos. Seu abdômen havia sido lacerado, talvez estivesse ela com hemorragia e sentia frio, dor e raiva. Com lágrimas a cair-lhe a face, tentava articular uma frase em meio a dor sentida, mas não conseguia. Foi encaminhada rapidamente para emergência dado a gravidade dos ferimentos. Era crítico seu caso, com risco eminente de morte. Ouvia-se uma voz ao longe sussurrar. Sedação, entubação, bradava um homem de branco.

 A mulher em alguns lampejos, flashes, cenas desfocadas, arqueava falar, faltava-lhe o ar...quase desfalecia ao tentar respirar...Sua mente aos poucos de tudo se desligava; a dor sumia; Em seu olho fixo no teto, a sensação de  medo estava estampada. Era estranho como tudo tinha acontecido.

 

 

 

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